Luísa Nóbrega chegou a Porto Alegre nesta segunda (15) e na quinta (18) já vai para a região do pampa, onde desenvolve o projeto de residência “Em nome do pai ou veemência, culto”, selecionado pela Subterrânea no edital VETOR. Durante a visita à capital, ela falou sobre seu interesse na voz e na exaltação rítmica dos cultos evangélicos que pretende pesquisar na cidade de Bagé. Luisa também comentou sobre alguns procedimentos das igrejas pentecostais, sobre o viés político em destaque com Marco Feliciano e sobre outras possíveis formas do estudo da voz – entre eles, a hipnose, que a artista começou a pesquisar em residência na Ucrânia.

Sobre “Em nome do pai ou veemência, culto”: o projeto aborda a atuação oral e corporal durante os cultos nas igrejas pentecostais do Pampa – região que, segundo o IBGE, tem o maior número de evangélicos do estado. A partir dos registros feitos nas igrejas, a artista propõe atividades como performances, oficinas e uma pequena publicação. Como se instauram e se modificam os lugares de fala durante o culto e de que maneira o corpo reage às interdições e prescrições feitas pela igreja são algumas das questões levantadas no projeto.

 


 

Tu estavas agora em Fortaleza realizando um trabalho parecido com o que tu vais realizar aqui…
Na verdade a pesquisa daqui vai ter o desdobramento da que eu fiz lá. Lá eu já comecei esse trabalho de mapear as igrejas, e acabei focando muito no vídeo, a partir dessas experiências com as igrejas lá.

E quais eram essas igrejas que tu estava frequentando?

No fim, as que eu mais frequentava era a Deus é amor e a Maranata. Mas eu também ia à Universal como contraponto, porque ela vai em outra direção. E aqui penso em focar mais na Deus é Amor.

Quantos anos tem a Deus é Amor?
Ela foi fundada nos anos 1960. A mais antiga de todas é a Congregação Cristã. A Assembleia de Deus foi logo depois, e isso por volta de 1910 – elas são bem antigas mesmo. Mas daí a Deus é Amor é meio que uma segunda leva, junto com a Quadrangular e outras. Elas ainda tinham uma coisa mais rígida, uma coisa de moral. Na Deus é Amor, por exemplo, não pode assistir televisão.

Mas eles controlam isso de acordo com o culto? Através da fala?
Sim, mas não é tão óbvio. Por exemplo, eu sei que ele fazem isso por ter falado com outras pessoas. Mas quando você começa a ir lá não é de cara que eles te dizem isso.

Não é como se te entregassem um conjunto de regras…
Não. É conforme você está indo lá. Mas tem manuais também. Eu quero ir atrás disso. Acho que eles têm uma tradução da Bíblia específica com recomendações… Mas é conforme você vai aprofundando o contato com eles. Tem também uma coisa de as mulheres não cortarem o cabelo, mas eu, de cabelo curto, não tenho problema nenhum.

Hoje há questão do Marco Feliciano ser pastor e as igrejas evangélicas estarem em destaque. Como foi isso pra ti? 
É super delicado…. Mesmo antes disso, já era uma questão que tinha um aspecto político muito delicado porque a Assembleia de Deus, principalmente, tem uma bancada evangélica na Câmara cada vez mais forte. Mas, ao mesmo tempo, eu optei por não ir diretamente neste ponto, pelo menos agora nesse momento, porque, por exemplo, na Deus é Amor eles são contra a ter essa participação política. Mas também porque eu acho que é muito fácil simplificar a questão das igrejas e, na verdade, é um feixe espinhoso, cheio de contradições, cheio que questões político-sociais. Também acho que é uma coisa que precisa ser dita, mas não é uma posição confortável. Eu tô indo devagar, até porque eu optei por não ter um olhar de fora, distanciado, mas tentar… não  exatamente ser um olhar de dentro, mas do aspecto estrutural, dos elementos do culto.

Não há nenhum viés antropológico no teu trabalho, então?
Não, acho que não tem nada de antropológico, porque é isso: é uma aproximação, ver aquilo como experiência. Tem também essa questão da voz que pra mim é muito forte, que é por onde eu entro. Claro que não é só a voz, é também a linguagem porque tem todo um vocabulário de gesto, além do discurso. Eu diria que a voz é mais forte que o próprio discurso, uma coisa de ritmo, a coisa do toque, da mão. Eu estou observando estes aspectos e tentando levar em conta a questão da fé e dos estados de transe ali dentro. É por isso que eu escolhi a Deus é Amor e não a Igreja Universal. A Deus é Amor tem mais essa coisa das alterações de voz, que não é só do pastor, tem uma coisa dos fiéis gritarem durante o culto. E eu estava muito interessada nessa ebulição, e lá tem uma visão muito forte desse viés apocalíptico – o mundo tá pra acabar a qualquer momento. É paradoxal.

Elas funcionam através dessa ideia de Fim do Mundo?
É, na Maranata, por exemplo, eles falam em um “momento terrível para o mundo e glorioso para nós”, porque é o momento da salvação. Tem um aspecto que eu acho que o lado político da coisa toca o que eu tô fazendo que é porque eu to interessada nessa violência, porque é tudo extremamente violento: o discurso, o uso da voz no culto, essa visão de mundo levando em conta esse desmoronamento e uma justiça inexorável. Então eu to interessada nessa violência que tem lá, mas, ao invés de pensar na violência do posicionamento dogmático, que já está sendo muito discutido, pensar a violência como intrínseca àquela forma do culto.

E tu te afeiçoas a alguma prática religiosa?
Não. Eu sempre tive um certo anseio por isso, mas eu nunca me enquadrei numa religião específica. Eu praticava meditação, yoga, sempre me interessei. Não diria que eu sou uma pessoa acética, eu flertei com muita coisa mas nunca vesti a camisa de uma religião. Eu acho que também a questão da fé tem um peso nessa história toda.

Tu já pensa em outros desdobramentos par essa pesquisa que tu vai realizar durante o VETOR?
Bom, com o que eu desenvolvi em Fortaleza eu vou fazer uma pequena publicação. Eu também fui escrevendo coisas – e com certeza eu vou fazer isso aqui – de um ponto de vista mais literário. Nessa publicação eu também chamei pessoas para escrever; chamei artistas ou pessoas que trabalham com arte e que foram em igrejas evangélicas, ou que tiveram uma relação forte com isso e que romperam para se aproximar da arte… Eu tenho vontade de continuar, e tenho vontade de explorar essa questão da voz, por exemplo, no espiritismo.

Mas pensas em estudar a voz ligada à religião novamente, então?
É, mas a coisa da voz eu já estou pesquisando também em outros lugares. Ano passado, na Ucrânia, eu comecei a pesquisar hipnose. Lá eu fiquei um mês e meio me comunicando por um detector de voz. Eu estava em silêncio e falando através de uma voz artificial. E aí fiquei pesquisando coisas que tinham a ver com voz e  descobri que tinham investimentos maciços no Leste Europeu sobre isso, ligados a parapsicologia – inclusive entendiam isso como armas para a Guerra Fria, você manipulando alguém a distância pra fazer o que você quer, para ter acesso a dados proibidos… E eu fiquei muito interessada nisso e comecei a assistir vídeos de hipnose. Por exemplo, eles tinham um programa de televisão que era um hipnotizador falando e as pessoas sentavam pra serem hipnotizadas via televisão.

Isso quando?
No final dos anos 80. Eu fiquei muito fascinada. Foi doido porque eu já tinha vontade de fazer esse projeto com as igrejas antes mesmo de ir pra Ucrânia, porque a hipnose não estava no meu projeto inicial – foi uma coisa que eu conectei totalmente porque a voz do hipnotizador é monótona, constante. Nesse ponto, é quase o contrário da voz de um pastor, que é veemente. A voz da hipnose tem essa coisa de ser meio artificial. Mas é impressionante, depois eu me dei conta: vários dos gestos que o hipnotizador faz são muito parecidos com os que o pastor faz também nos fiéis. Essas coisas de tocar na cabeça, virar a cabeça. Tem vários pontos em comum. É uma relação também de instâncias desiguais. Então acho que, apesar de ser um outro caminho, eles dialogam muito. E sobre hipnose eu quero estudar muito ainda. A hipnose eu posso entender como uma sistematização científica de experiências de transe. O que une tudo é essa fala que vem de outro lugar. É uma outra instância de fala que vem de outro lugar e que atravessa. Na igreja, por exemplo, tem o pastor falando a palavra de Deus, que é o orar em línguas, que é uma relação com a linguagem não sistematizada. Por exemplo, tem o dom de orar em línguas e tem o intérprete.

Como assim?
Alguém começa a falar numa língua estranha. Por exemplo, a língua dos anjos, e alguém traduz.

Em qual igreja?
Nas pentecostais.

Mas em todas?
Sim, porque ele é um dos dons do Espírito Santo, que é a marca das pentecostais.

Mas isso é encarado como uma técnica pra eles?
Então… Não, porque é uma experiência de transe, só que, ao mesmo tempo, sim, – é uma técnica.

Até porque se tu podes atingir esse nível, parece uma graduação dentro da interpretação.
É, só que essa interpretação é como se fosse divina. Não é uma decodificação. É uma tradução que é feita também pela Graça. Outra coisa de instâncias de fala é a possessão. O corpo possuído pelo demônio fala através do demônio e daí o pastor no exorcismo dialoga com esse demônio. É super paradoxal porque tem uma coisa de fazer o demônio falar, se dá um espaço de fala para o demônio dentro do culto. E as próprias exclamações dos fiéis, o “Glória a Deus”, não têm um conteúdo específico do que aquilo quer dizer, mas é um momento de exaltação. Parece alguma coisa que atravessa a pessoa que está falando e na hipnose acho que também tem uma relação dessa fala quase não humana e uma escuta perfeita. Porque é uma escuta que não é consciente do que está sendo falado, mas obedece à risca. Tem uma frase que está em um livro sobre voz de um filósofo esloveno, o Mladen Dolar, emque ele fala que “ouvir é a primeira forma de obediência”. Eu acho que é bem forte, tanto no caso da igreja quanto no da hipnose.

E tu leste enquanto tu estavas na Ucrânia?
Sim. Foi ótimo, porque lá nesse espaço eles têm curadores de lá e tem um curador convidado, que ajuda a elaborar a proposta da residência naquele ano e que também faz a curadoria. E era a Agneska, polonesa, que é apaixonada por voz. Ela tinha várias referências muito interessantes, foi incrível.

É um trabalho de pesquisa mesmo, prático e teórico.
É, e acho que a teoria te dá um olhar menos naturalizado para as coisas. Mas acho que eu encaro a pesquisa de um modo mais filosófico.

Até porque tua formação é na Filosofia.

É. E até por isso eu optei por não filmar os cultos, só gravar o áudio. Porque você interfere muito. Se você tem essa proposta de filmar o culto você entra de uma outra maneira ali dentro.