O projeto Trasposição, de Túlio Pinto, selecionado para o 1° Prêmio IEAVi de Artes Visuais, estabelece um diálogo entre dois espaços públicos de Porto Alegre – A Galeria Augusto Meyer da Casa de Cultura Mario Quintana e aproximadamente 15 m²da Praça da Alfândega – por meio do atravessamento entre as linguagens de escultura, performance, instalação e fotografia.

O início do processo se dá com a praça ocupada por um sítio de obra composto por um geométrico cúbico de 180 x 220 x 220, erguido a partir do empilhamento de 6 mil blocos de concreto, usados para calçamento, três carrinhos de mão de cor laranja e um pequeno abrigo temporário pré-fabricado. Nesse momento a Galeria Augusto Meyer estará vazia – a espera. O número de blocos de concreto empilhados em espaço público foi definido a partir da dimensão da área do piso da galeria. Uma forma de representação desse lugar específico relocado e inscrito em outra paisagem.

Mais informações sobre o projeto:

Site da Casa de Cultura Mário Quintana

Site do projeto Transposição

Texto de Marcus Lontra para o projeto “Transposição”

PAISAGEM: SITUAÇÃO E DESLOCAMENTO

“O lugar é onde estão as referências pessoais e o sistema de valores que direcionam as diferentes formas de perceber e constituir a paisagem.”

PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) de Geografia.

 

Há, em todo o processo cultural brasileiro, uma curiosa vocação para o sincretismo, uma permanente busca de síntese entre determinadas situações aparentemente conflitantes e, mesmo, antagônicas. O processo antropofágico brasileiro opera, assim, no sentido da assimilação e construção de um pensamento e de uma ação estética que seja um amálgama de várias informações que se comunicam numa mesma escala de valores e referências, sem evidente predomínio de uma idéia ou de outra.

Esse é sem dúvida o caso de Túlio Pinto, artista que consegue, com sensibilidade e talento, estabelecer um provocante diálogo com a tradição escultórica modernista brasileira, a ela inserindo aspectos e comportamentos que encontram eco na ação artística dos dias atuais.

A escultura origina-se com a construção de totens, elementos identificadores de grupos sociais que comungam valores comuns culturais; a sua presença, em local determinado e central, tem por objetivo agregar os indivíduos e caracterizar o território e a sua posse através de um elemento característico que atua na paisagem natural. Com o conseqüente desenvolvimento de algumas comunidades humanas e a ampliação de seus domínios, os marcos de fronteira são criados com o objetivo de caracterizar os limites, espaços concretos e misteriosos entre aquilo que nos identifica e temos posse e poder com outros espaços pertencentes ao terreno do desconhecido e da incerteza.

Na escultura clássica, a obra parecia estar contida no interior da pedra, cabendo ao artista a tarefa de desbastá-la, de revelar através da ação artesanal, a essência – e a voz – da arte contida do silêncio inerte do bloco mineral. E ela se estrutura através das alegorias e das metáforas do poder, seja ele militar ou imperial, sacro ou divino. A sua presença é marcante no sentido de identificar e valorizar pontos específicos dos agrupamentos urbanos; e essas alegorias tri dimensionais atuam como os antigos totens, incorporando valores mais complexos determinados por sociedades marcadas por divisões em classes sociais perfeitamente identificáveis. Com a revolução industrial e o conseqüente advento de técnicas de reprodutibilidade, a modernidade acabou por atribuir ao objeto escultórico algumas novas verdades, novos conceitos, novas finalidades.

A autonomia do discurso artístico – premissa da modernidade – é o ponto de partida das pesquisas de Túlio Pinto. A escultura é o resultado de ações e materiais oriundos de processos industriais e a forma se determina por conceitos que estabelecem valores estruturadores como peso, equilíbrio, volume, modulação, criando um objeto estranho à paisagem natural. Idealizada e criada pela ação humana, essa forma se insere no mundo como elemento paradoxal, definindo-se pela verdade e clareza construtiva, inquietude e tensão conceitual. Assim, os trabalhos do artista são diálogos inteligentes e afetivos com a modernidade, compreendendo-a como exercício permanente de experimentação e recusando algumas afirmações teóricas contemporâneas. Tais afirmações tendem a reduzir a objetividade da reflexão teórica e a busca de uma beleza determinada pela verdade a um ponto qualquer da história do século passado.

Túlio Pinto, em momento algum, recusa ou renega o seu próprio passado. Há, em cada objeto, uma tensão explícita que dialoga com os conceitos estéticos estabelecidos pela essência da forma brancusiana e pelo movimento dos móbiles de Calder, ao mesmo tempo em que incorpora conceitualmente valores e referências oriundas do movimento construtivo, de forte presença no Brasil. O artista é herdeiro direto de grandes trajetórias do pensamento escultórico brasileiro que se inicia com Franz Weissmann e prossegue com José Resende e Waltércio Caldas. A essas referências iniciais ele acrescenta a experimentação e a ousadia de outros artistas que, desde os anos 50 colocaram em xeque, os conceitos escultóricos tradicionais.

A escultura foi precursora das técnicas artísticas cujos limites e definições acabaram por ser pulverizados pela realidade contemporânea. A idéia de um lugar – preciso e definidor – ainda evidente no mundo moderno vai ceder espaço a conceitos mais amplos, onde a geografia não se explica mais pela dicotomia centro vs. periferia. Assim o objeto, a instalação, a perfomance unem-se no sentido de produzir uma obra mais comprometida com a vida e com a velocidade das grandes cidades contemporâneas. O objeto escultórico tradicional, herdeiro direto dos antigos elementos totêmicos dos primeiros agrupamentos humanos, mantem o mesmo espírito centralizador e organizador do espaço. No mundo em que vivemos, o conceito deleuziano de rizoma é o principal definidor de uma nova geografia com novos valores que introduzem a idéia temporal no espaço físico, recriando uma nova história, redefinindo idéias e situações e provocando a valorização do deslocamento como prática essencial da ação humana contemporânea.

O projeto “Tranposição” sintetiza uma série de ações e interferências artísticas desenvolvidas por Túlio Pinto nesses últimos anos. Conforme a descrição do projeto, dois espaços no centro da cidade de Porto Alegre – a Praça da Alfândega e a galeria Augusto Meyer da Casa de Cultura Mario Quintana – criam um eixo no qual, durante vinte dias, um cubo composto por aproximadamente 6000 pequenos cubos de concreto construído na Praça será cotidiana e paulatinamente “desmontado” e transferido, com auxílio de carrinhos de mão, para o interior da galeria. Esse deslocamento, em sintonia com os conceitos contemporâneos, recria novas geografias e propõe instigantes relações sobre o corpo real da obra de arte e o seu trânsito – a sua virtualidade e indefinição formal diariamente alterada pelo transporte. Assim, o que de imediato se faz presente num determinado espaço público, com ele dialogando através da estranheza de uma fisicalidade destituída de função ou apelo estético gratuito, é reforçado pela ação que assume papel protagonista e para o qual o público é convidado a participar com outros carrinhos de mão colocados à disposição. A presença de uma casa e a conseqüente criação de um espaço íntimo e privado em plena praça pública serve de abrigo e morada do artista durante o período da ação experimental estética por ele impetrada. A importância desse elemento acentua-se com as fotografias que diariamente serão incorporadas nas paredes externas da casa, documentando e informando sobre o percurso (ou deslocamento) do corpo da arte e suas implicações discursivas.

Portanto, trata-se de um evento de caráter múltiplo, com o objetivo de questionar valores e qualidades substantivas do espaço e sua relação com a arte. Os blocos de concreto transpostos de um lugar para o outro adquirem novos conceitos e novas interpretações. Domesticados no espaço institucional, através do registro fotográfico, eles documentam todo o desenrolar de um enredo e suas implicações que dialogam com o urbanismo, a arquitetura, a performance, o happening, a fotografia e, principalmente, com a relação instigante entre aquilo que concretamente ainda se encontra em determinado espaço físico e aquilo que se recompõe formalmente em outro, sem no entanto jamais recuperar o seu conceito original. Nessa relação entre o real e a virtualidade, a obra – ou melhor, o processo – acaba por ser o registro de um roteiro com certas características cinematográficas. Inserir esse discurso não formal incorpora precisas noções de pertencimento do espaço público compreendido como bem coletivo e cenário principal para a ação da arte contemporânea, que não compreende mais os limites institucionais e mercadológicos a ela normalmente oferecidos. Experiências consistentes e ousadas como o projeto “Transposição” de Túlio Pinto provocam a necessária estranheza e questionam os limites entre a arte e a vida.

Marcus de Lontra Costa

Rio. Abril. 2012