Ernani Chaves é artista visual e arte-educador. Em 2013, integrou a exposição Transferências Temporárias, ao lado de Diego Passos e Marília Bianchini na Casa Paralela, em Pelotas. A exposição teve curadoria do Atelier Subterrânea e fez parte do projeto BR116: circuitos independentes em trânsito.

 

[Ernani] O meu trabalho inicia com uma reflexão em cima dos desequilíbrios corporais. Estou brincando de dizer “transferência” porque o nome da exposição é Transferências Temporárias, mas é uma transferência de tudo que eu passo de desequilíbrios corporais com observações nas quais há desequilíbrio. Eu juntei uma pesquisa poética, numa formação de artes, com minhas questões de desequilíbrio de estar no mundo, de me desequilibrar mesmo, de sofrer desgastes e desequilíbrios muito severos, de eu sentir relações de peso muito forte com o meu corpo e com as coisas que eu fazia. Eu era um cara muito ativo. Eu trabalhava muito com coisas pesadas também. Eu sempre tive uma relação forte com o raciocínio espacial. Sou filho de marceneiro, então tenho essa relação com a madeira. Eu vim de uma família de gente que trabalha com as mãos, que resolve problemas com espaços. Em paralelo, tenho um trabalho de arte-educador, de colocar a mão na massa, de construir coisas, de dia-a-dia, de trabalhar com coleta de materiais por causa de questões de sustentabilidade. Grande parte das minhas obras é feita assim. Eu compro pouca coisa – compro tela, tinta, mas as madeiras são todas coletadas. É um viés de relação com um mundo de muito desperdício. Eu tenho isso bem radical comigo, eu aproveito tudo para fazer materiais, para fazer minhas gravuras. Eu estou sempre coletando nesses entulhos.

 

[Isabel] Eu estava vendo as fotos da montagem e da exposição em Pelotas e vi que algumas madeiras eram mais claras e outras eram mais escuras, e aí eu pensei nesta historicidade dos objetos porque parece que eles carregam um tempo, né?

Sim, alguns materiais são muito velhos. Eu catei em galpões na Serra gaúcha. Aqueles que estão na Casa Paralela são restos de gavetinhas de abelhas que geometricamente tu olhas e jura que eles são perfeitos. Como eles têm muito tempo de uso, eles têm a geometria corrompida. Eles já têm diagonais, desgastes na ponta. Então quando tu pões um em cima do outro, tu vês que eles já têm desgaste. Todos os materiais com os quais eu trabalho tu juras que eles são geometricamente perfeitos, mas dentre eles há muitos que são fora do esquadro. E tu observaste naqueles que há uns novos: foi a primeira vez que eu me dei o luxo de mandar fazer uns novos.

Em Pelotas, nós estávamos tentando empilhar e estava super difícil. Eu não dizia para a galera, mas já tinha observado que os novos com os antigos não estavam se bicando. Então foi super difícil. Estou incluindo estes novos porque os antigos já se deterioraram. No Rumos, eles foram muito manipulados – imagina toda a Rede Municipal de São Paulo. É muita manipulação e eu, como artista, não tenho do que reclamar.

Fotos Anderson Astor

 

Como funciona este convite para as pessoas remontarem e empilharem?

O convite é a partir do desmoronamento, mas também pode acontecer a partir de um ímpeto da pessoa – tu chegas lá e estás louca para colocar a mão. No que tu colocas a mão, ela desmorona. E isso causa questões interessantes: tem gente que fica abalada, tem gente que acha que estragou – e bate naquela coisa da obra imaculada e intocável.

Estes materiais vieram de uma pesquisa da vertical na arte. Eu comecei pesquisando o Brancusi. Ele foi um escultor que conseguiu incluir a parte de baixo da escultura base, que seria para fazer uma elevação da peça, e tirou a peça escultura e ficou só com a base. Ele é um dos primeiros que começa a trabalhar com uma coisa repetitiva, que o minimalismo vem fazer mais tarde. Isso é muito legal. Ele foi aluno do Rodin, que foi outro que começou a revolucionar a escultura e já começa a mexer com os pedaços. Ele pega um braço de uma escultura e cola na outra. Isso já uma afronta, imagina. Em argila, ao invés de modelar, aquela coisa romântica, ele pega uns pedaços e vai batendo na escultura e vai modelando ela meio na paulada – uma coisa muito de ação no material. Depois pesquisei o minimalismo, o Serra, Tatlin, Schwitters, o Hélio, a relação com o espaço e acumulativa, vivencial. Eu trabalho com peso, com sustentação, com a textura. Na gravura, eu uso a textura para produzir uma imagem e, no meu trabalho de empilhamentos, a textura serve para se agarrar uma a outra. O atrito.

Crédito do artista

 

Tu as projetas de acordo com o espaço?
Como elas são peças muito geométricas, elas se adaptam muito bem à grande maioria dos lugares. Lá na Casa Paralela, o empilhamento teve que se apoiar na parede porque o chão estava muito úmido e escorregava. Em outros lugares, eu coloquei no centro. No Rumos, no Itaú, eu tive o privilégio de ficar em um vão vazio junto com três artistas e coloquei só uma pilha que parecia um esqueleto de coluna grande. Pedi para que deixassem as janelas do prédio abertas, de propósito, para ter a corrente de vento. Então as pessoas começavam a fazer uns joguinhos do tipo “quanto tempo tu acha que ela vai durar?”, “ah, amanhã ela tá no chão”. As pessoas chegavam lá e ela estava de pé. Dai era “não, não dura mais dois dias!” e ela não caia. E isso era muito legal porque criou uma mediação não construída por mim, mas pelas pessoas, nesse quando será que cai? Havia pessoas também que queriam acabar com a coisa. Ela está erguida? Não, quero acabar com isso porque “ela me incomoda, me incomoda ver isso torto”.

 

Foi o que tu comentaste uma vez aqui na Subterrânea, certo? Que uma vez alguém chegou do teu lado e disse que aquilo estava causando uma angústia.

E eu nunca achei que aquilo pudesse causar angústia! Isso é legal porque transborda a proposta do trabalho. A proposta é ação sobre o material e elevação para vertical. Hoje em dia não é só isso, mas quase sempre eu faço a tendência vertical, porque quando eu estou montando a escultura, eu não aguento ficar só trabalhando na horizontal. Então o empilhamento está relacionado com minhas questões corporais na hora de montar. Quando vou colocar a escultura de pé, já elevo. Eu chamo de escultura porque quem olha ela assim parada pensa “Ah, é uma escultura”. Daí depois “Não, mas é uma construção? Uma instalação?” e quando me vê fazendo, é uma performance. Então ela tem essa coisa híbrida.

Foto Anderson Astor

 

Este trânsito?

Exato. A Maria Helena Bernardes falou muito bem disso uma vez. Ela disse que a obra pega um pouquinho em cada lugar e, ao mesmo tempo, ela é também nada. Isso é a potência do trabalho. É legal por causa deste trânsito, mas eu não falo “A Performance dos Empilhamentos”. Digo apenas “Os Empilhamentos”. E o desmoronamento, que é quando ela desaba e quando ela cede e não se segura mais. Ali no chão, ela também é um trabalho, porque eu estou agindo em cima dos materiais. Quando ela cai e uma peça vai lá longe, lá no fundo, é como se eu tivesse feito uma grande extensão horizontal. Quando ela está desmoronada em uma grande pilha, ela é o trabalho também.

Tem toda essa história da minha fisioterapia me ajudar. Tem um conhecimento anterior relacionado com a estrutura. E se a arte tem isso de desenhar o corpo, ninguém fala das partes internas. Só a medicina que vai falar disso? Hoje eu me interesso um monte nisso, por exemplo, “como a vértebra se calça ali? Como é a estrutura? Como fica melhor?”. Eu preciso saber disso para me manter de pé. Eu não posso negar. Não tem como. Eu quero saber que nervo está pinçando ali. Eu pego todos os meus desequilíbrios ósseos e aplico em cima do trabalho.

Foto Anderson Astor

 

Cada vez que eu faço o trabalho eu construo um novo método, e está meio relacionado com a vida. Todo dia tu tens que criar uma possibilidade diferente de fazer alguma coisa, por mais que tu aches que tu sabes fazer ela. E o estar vivo é isso, o tempo todo como se fosse a primeira vez. Estou aqui falando sobre isso como se fosse a primeira vez que estivesse falando sobre os empilhamentos. Eu vejo que construo outra lógica para falar sobre a mesma coisa. Eu não busco um equilíbrio estético, mas sim um equilíbrio físico para o trabalho se manter estruturado. Eu brinco com as verticais, com as curvas. E a aproximação com o público se dá porque é móvel – posso dizer que o trabalho não existe dentro de uma caixa, uma maleta. Já aconteceu de ser jogado fora. Acharam que era lixo. Pra tu veres como ele pode ser algo grandioso, mas, ao mesmo tempo, nada. Antes de eu ir para o Rumos, aconteceu de acharem que uma das sacolas era lixo. Foram me ajudar a carregar – relações do corpo, eu estava cansado – e quando eu vi, cadê? E daí viajei 50km atrás de um amigo meu, marceneiro. E consegui. Mas foi pro Rumos outro material.

 

A gente estava começando a pesquisar a interpretação a partir do ponto de vista dos artistas – como os artistas enxergam o ato interpretativo em relação a sua obra. Como tu vês a relação do público com o teu trabalho – já que tu citaste aqui alguns destes momentos em que a obra causa angústia, estranhamento, e outras vezes é associada ao próprio lixo?

Como ela é modular, ela tende a se aproximar do jogo, do quebra-cabeça, do compartilhamento – porque se seis pessoas aparecerem e tiver muitos módulos, naturalmente elas se sentem à vontade para pegar alguns módulos, porque há esse excesso da unidade. Então se tiver uma pilha de cem módulos aqui, é impossível as pessoas não sentirem vontade de chegar perto de dois pedaços. Há essa questão próxima dessa quantidade. Então tem a apropriação – as pessoas querem construir com aquilo sua própria obra. Tanto que algumas pessoas separam as peças, constroem suas próprias esculturas. Tem gente que abarca e quer fazer algo coletivo, algo que aproxima as pessoas. Tem uma potência de compartilhamento muito forte, de vivenciar o espaço. Uma hora a pessoa está aqui, a outra está ali, e ele se propõe a ir até ali e começar um diálogo de construção do espaço. É natural. O que acontece: desde a infância, o empilhamento é do ser humano. Ele começa com 2, 3 anos de idade. Ele nasce lá embaixo. E isso aconteceu naturalmente pra mim. Não foi algo do tipo “ah, as crianças fazem isso, vou fazer isso”. Não. Veio ao encontro depois, o público em si, quanto mais baixo a idade, mais à vontade ele se sente. Eles se apropriam mesmo e fazem construções infinitas. É uma coisa enigmática. Além de tudo que, nas pilhas, há um desdobramento e uma complexidade de relações com o espaço que transborda o mero empilhar na vertical.

Eu fui convidado pelo SESC para fazer um trabalho de interação com o público. Eu levei mais de mil canudos de papelão da indústria. Empilhei duas torres e botei na passagem bem perto dos pilares do trem – era no Museu do Trem em São Leopoldo. E eu coloquei no ponto de vista de quem olha pra parecer que as pilhas estavam segurando os trilhos do Trensurb. E então começou um vento, umas crianças foram lá e um menino atravessou a pilha. Foi maravilhoso de ver. E a pilha caiu. E desencadeou: vieram outras crianças e dali elas só saíram para almoçar. Havia umas 30 e poucas crianças enlouquecidas. E foi maravilhoso. É algo que toma conta. Eu acho legal porque borra essa coisa “Oh, a arte contemporânea; oh, as artes”. E não é da minha intenção fazer algo para aproximar o público – isso acontece naturalmente. Comecei a empilhar por questões da minha pesquisa.

Crédito do artista || O convite constante de intervenção por parte do público, muitas vezes aceito. No toque, interfere-se não apenas no empilhamento, mas na projeção e sobra espacial que a estrutura provoca. A vertical do empilhamento dialoga diretamente com a altura daquele que se relaciona com a obra, em um eterno jogo entre o esticar e o tensionar.

 

Os desmoronamentos acontecem por causa da instabilidade, mas às vezes as pessoas tocam e eles ocorrem. Como são essas reações?

São diversas. Tem gente que fica abalada; tem gente que sai de fininho porque se sente extremamente responsável e fica “Vamos sair daqui porque quebramos o troço!”. Tem gente que conserta de qualquer jeito e sai fora o mais rápido possível. Tem gente que desmancha tudo e já faz outra coisa e fica um tempão ali, mas daí tu vê que são pessoas já acostumadas com uma relação com a arte.

 

E destas reações, quais te interessam mais?

Todas me interessam. Às vezes eu penso que não sei se devo ficar me interessando por alguma reação, entende? Penso que não é um trabalho que eu posso prever o que vai acontecer. O que é interessante também é que eu já fiz trabalhos a partir de coisas que eu vi nestas reações, que já me suscitaram outras formas de empilhar, de construir, ainda que eu nunca misture um tipo de madeira com outro. Eu tenho umas que são uns tacos pesados que, uma vez, um curador de uma mostra colou na parede com fita banana! E eu vi, porque aquele taco deveria estar caindo. Não poderia estar naquela posição.

 

E aí tu viste que estava colado?

Sim, daí eu deixei daquele jeito para não criar um frenesi. Tudo bem, ninguém viu, todo mundo achou que era pra ser daquele jeito. Mas quem pega estes módulos e coloca um bem encaixado no outro achando que aquilo vai se fixar, está tomando um tiro no pé. Quanto mais tu te esforçares, mais aquilo faz uma força única que derruba todos. Então eu os coloco mais deslocados, porque eles se agarram que nem aranha, eles dependem de espaço. É que nem a nossa coluna. Tem que ter estas curvas.

 

Quem é perfeccionista deve ficar irritadíssimo.

Bah [risos]. Então são ações sobre o material para testar os equilíbrios.
Os desequilíbrios.
As escoras.
O potencial de ficar de pé.
O tempo.
O espaço.
O som.

Foto Luciano Montanha || No empilhamento apoiado na parede, os módulos revezam-se nas posições horizontal e vertical, formando uma pilha em “T” e causando um triplo apoio. A estrutura remete À coluna vertebral, constante referência vertical nos empilhamentos.