Marília Bianchini é artista e mestranda em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS. Ao lado de Diego Passos e Ernani Chaves, ela integrou a exposição Transferências Temporárias, com curadoria da Subterrânea, na Casa Paralela, em Pelotas. Na entrevista, ela comenta sobre os procedimentos da confecção do papel e as técnicas que utiliza para desenvolver o material que compõe suas obras, além falar sobre fotografias, delicadezas, temporalidades, proximidades, dúvidas e materialidades que cercam o seu processo de criação.

 

Eu ia começar te perguntando sobre o processo do teu trabalho, mas pensei que o teu trabalho é, de certa forma, o próprio processo, certo? Como tu vês essa intersecção?

É, tem muito do fazer, da mão da massa.

Como funciona a confecção dos materiais?

Não há nada de apropriação. Desde as fotos – eu faço tudo. Eu trato as imagens e imprimo em casa, na impressora caseira, multifuncional, comum, uma jato de tinta. O papel sou eu que faço. Tem muito a ver com as coisas que estão perto de mim. A bananeira é do pátio de casa, a paineira é da esquina e casa… Eu pego o vegetal e o transformo em papel. É o processo mais demorado e acredito que tenha algo de diferente aí, porque geralmente o pessoal não faz. Tu pegas a bananeira e cortas o caule em pedaços. Depois, há várias maneiras de fazer papel. Não existe um processo certo, único.

Tu foste descobrindo isso com o tempo?

Primeiro eu fiz uma pesquisa na internet. Vídeos, Google. Achei algumas indicações de livros, dei uma olhada neles também. Então, comparei pra ver o que havia em comum naquelas receitas e elegi uma, que até é uma dissertação de mestrado. Essa pessoa cortava, picava, e cozinhava com água oxigenada. No cozimento, aquilo começa a soltar coisas que vão apodrecer, coisas que vão estragar a fibra, então tu separas isso. Depois de cozinhar por umas 3 horas, tu lavas também por um bom tempo. Nesse lavar, tu vês que sai uma coisa marrom, uma espuma. A água vai clareando e tu vês que as partes que não são fibra saem, tu vês direitinho o fio da fibra. Para isso, é tempo e água. Não é algo que dá pra fazer em um dia ou dois. É algo que tu vais fazendo, espera, para, volta.

Depois que está limpa, se bate esta fibra. Essa pessoa da dissertação dizia para bater com martelo de madeira – e tem a questão da tradição, que é de bater com martelo de madeira. Só que daí tu começas assim e lá pelas tantas está doendo tudo! Aquilo tem um impacto… Essa fibra vai se desmanchando, vai virando uma pasta. Dá pra ver direitinho ela se transformando. Com isso, tu tens a polpa. Daí tu pegas ela e a coloca em uma tina de água e a quantidade depende da espessura do papel que tu buscas. Tu mergulhas o molde, que é como aqueles de serigrafia. Aí, tu mergulhas com a tela para baixo e o molde em cima, e depois quando tu tiras o molde tu tens a folha em cima da tela. Deixas secar. Depois, eu fui descobrindo algumas coisas. Por exemplo, o martelo podia ser de borracha. Aí já melhorou um monte! (risos)

Um upgrade!

Ainda é aquele bater, aquela força. Totalmente manual. Eu já estava imprimindo nestes materiais, já estava fazendo desta maneira. Mas, decidi fazer um curso. Descobri um japonês, em São Paulo, que dá o curso justamente sobre fibra de bananeira, cana de açúcar e kozo, que é uma fibra japonesa. Então fui lá para tirar algumas dúvidas, porque eu já estava fazendo papel, e também para aperfeiçoar.

E rendeu?

Foi muito legal. E assim… ele bate no liquidificar!

Bah! (risos). Já desmitificou!

Sim, várias coisas! Ele deixa um tempo fermentando, deixa de molho antes de cozinhar. Ele cozinha com soda cáustica, o que diminui o tempo do cozimento pra 1h, 1h30.

E por que tu sentiste a necessidade de fazer o próprio papel?

Vem de um desdobramento de trabalhos anteriores. Eu pensava a partir da imagem fotográfica. Há textos que dizem que a foto é uma imagem achatada, homogênea, diferente do desenho e da pintura, que têm um acúmulo de tempo relacionado à observação do artista, que está olhando, fazendo. Quando tu olhas para esses desenhos e pinturas, tu não consegues olhar tudo de uma vez só. Tem algo de tu olhares a pincelada, ver como aquilo é construído. Na fotografia, como ela é feita de uma vez só – abre o diafragma e a imagem é feita – não existe uma hierarquia entre as coisas. Existe um entendimento entre teóricos de que a imagem fotográfica é achatada. Pensando nisso, eu quis mexer com as características da imagem fotográfica. Comecei imprimindo fotos em um papel japonês, que é usado em restauro – transparente e bem fininho. Eu fazia uma sobreposição de camada. Cada camada tinha uma temporalidade diferente porque eu fazia fotos do mesmo lugar. Depois, eu colocava pedaços destas fotos e montava uma cena com essas coisas diferentes.

Tu imprimias nesse papel japonês estes pedaços?

Sim, e montava uma só imagem. Então, onde tinha só uma camada do papel, ficava uma imagem mais fraca. Quando havia duas camadas que se sobrepunham – e se era a mesma imagem – ela ficava mais viva, mais forte. Às vezes, eu sobrepunha coisas diferentes, por exemplo, uma janela aberta e a mesma janela fechada. Então, tu tinhas uma mistura das coisas, e era isso que me interessava. Uma imagem mais forte, uma mais fraca, mas tudo a mesma imagem. E depois disso, eu comecei a fazer testes com papéis diferentes. Daí eu estava fazendo uma foto só, com papéis de várias origens. Tinha uma parte em um papel de caderno, uma parte em um papel kraft, uma parte em um papel de seda, mas era tudo a mesma foto. Então eu pensei: “se eu consigo fazer isso com uma foto só, de repente eu consigo isso com um papel só, se o suporte não for homogêneo”. Por isso, eu comecei a ir atrás de papéis para ver se eu achava alguma coisa, mas mesmo os papéis artesanais, eles têm o mesmo padrão. Eu queria fazer desde o início para testar fibras diferentes, usar a bananeira, a paina.

E a questão da imagem que tu imprimes, como se dá essa escolha?

Pois é. Esta questão da fragilidade do papel, da leveza, tem muito a ver com a passagem de tempo. O próprio processo de transformar uma coisa em outra tem algo de ciclos, passagens, tempo. Tem algumas fotos da minha avó – e tu sabes que é a minha avó porque eu te digo, mas poderia qualquer um, é uma senhora idosa. Tem ferramentas que eu uso no jardim, no pátio, para mexer nessas plantas que depois viram papel. Normalmente, eu escolho ferramentas que já estão arranhadas, quebradas, enferrujadas.

Que já carregam essa história?

É. Eu já fiz também algumas coisas com uns galhos.

E a cadeira de balanço?

A cadeira vem de um trabalho que eu tinha feito antes, daqueles trabalhos com os papéis. Em um deles tinha a minha avó sentada em uma cadeira de balanço. Alguns pedaços eram a cadeira vazia, alguns eram pedaços com ela sentada, e pedaços de uma almofada na cadeira. Esse trabalho tá lá em casa ainda. A minha avó morreu ano passado e então, nos trabalhos que eu fiz depois disso, eu vejo muito essa questão da ausência. Do não estar aqui. Pra mim, aquele da cadeira de balanço é isso. A cadeira vazia é algo de ausência mesmo.

Sim, até porque uma das funções da cadeira é esta, servir de sustento para alguém.

Exato. E aquela cadeira é isso, estar vazia é uma ausência que está ali. Mas eu acho que, quando tu olhas o trabalho, tu não tens todas essas informações. Penso que ele funciona muito por uma questão gráfica mesmo. Das curvas, porque é de uma madeira vergada, e todas aquelas curvas têm algo de orgânico.

É, quando eu vi aquele trabalho pela primeira vez, de relance, não percebi que era uma cadeira, achei que era algo mais abstrato.  A cadeira de balanço tem algo muito do cotidiano, de casa…

É, e todas estas imagens são de coisas de casa. Tudo está muito próximo a mim. Não é sobre a casa, mas é tudo muito próximo. As ferramentas, as plantas, os móveis.

O que tu gostarias de experimentar?

Eu tenho muita vontade de fazer livros. Aproveitar essas transparências, essas coisas do papel. Nessa pesquisa do papel, eu acabava tendo muitos insights de encadernação, e daí é um mundo novo, muito legal. Mas ainda tenho que pensar mais um pouco.

Que reações que as pessoas já tiveram sobre teu trabalho? Alguma coisa que elas te disseram, ou que tu leste que escreveram sobre ele?

Eu tive essa experiência no Santander Cultural de exposição que foi muito boa justamente porque teve uma conversa com a curadora antes da exposição, e depois da exposição muita gente viu e veio falar comigo. As pessoas percebem várias coisas que eu estou botando ali. A pergunta que mais me fizeram é: “tá, mas e quem é essa senhora?”. Direto. Claro que desconfiavam que era a minha avó, mas eu achava muito legal que podia não ser. Várias vezes eu pensei “posso até responder que não é”. Ao mesmo tempo em que perguntam e que isso chama atenção, acho legal que não esteja explícito.

As pessoas ficam muito impressionadas da questão do papel mesmo, da delicadeza. A gente não está acostumada com a fragilidade; a gente lida com o papel o tempo inteiro, mas é esse papel padronizado. Quando tu chegas com outro papel, as pessoas se impressionam.

E tu pensas que o papel é o principal da obra, ou não há esta hierarquia entre a imagem, papel, processo?

Na verdade, acho que durante todo o processo, o que eu tentava fazer era equilibrar a força da imagem e a força do suporte. Normalmente, a gente tem o suporte como algo secundário. É um fundo e a imagem salta, fica mais evidente. A minha ideia sempre foi igualar essas forças. Hoje eu tenho pensado se há como fazer isso na totalidade. Penso que há algo da percepção que não deixa tudo no mesmo nível, mas penso que eu tenho conseguido diminuir a distância entre o suporte e a imagem, estabelecer um diálogo entre eles. Tua atenção fica sempre entre imagem/suporte, e tu percebes que o suporte faz parte – mas, ainda assim, como suporte.

E eu estava fazendo o papel, com todo esse envolvimento, esse gasto de energia, e as primeiras impressões que eu fiz não tinham nada a ver com o que eu havia imaginado!!

E aí??

Aí eu comecei a ver maneiras de trazer esse suporte pra cima. Pensei “pô, todo esse trabalho não é pra ser jogado fora”. Depois de todo esse trabalho do suporte, não dá para pensar em uma imagem que vai ali e poderia ir em qualquer outro suporte. Perde o porquê de fazer aquilo! Se eu fiz ele, ele tem que participar. Ele tem que estar junto. Então, comecei a tirar excessos. Por isso a imagem é isolada, o papel aparece bastante. Comecei a trabalhar também na imagem para ela não ficar tão saturada.

É um trabalho que chama o público pra olhar.
Sim. Acredito que sim.